Escapou desesperadamente da guerra. Tinha perdido tudo. Paulo Salvador (Angola, 1965) emigrou para Portugal juntamente com a sua família em setembro de 1975. E essa experiência de «voltar a começar do zero», tão jovem, trouxe-lhe uma perspetiva de vida única. «Na nossa família, Angola sempre esteve presente, falávamos com frequência da nossa terra, mas fizemos um esforço para nos adaptarmos depressa ao país que nos recebeu e ao qual sempre estaremos gratos», garante. Os seus 35 anos de carreira jornalística converteram Paulo Salvador num dos mais importantes divulgadores gastronómicos do país. Ao longo do seu percurso televisivo editou, coordenou e apresentou numerosos programas, como o magazine gastronómico “Mesa Nacional”. Também é o criador da Wine Summit “MUST-Fermenting Ideas”, o evento vinícola internacional cuja primeira edição teve lugar em junho de 2017, e que reuniu em Cascais especialistas de todas as áreas da indústria do vinho.
Entrevista com Paulo Salvador
Como começou a sua carreira jornalística?
Interessei-me pela comunicação desde muito pequeno e na faculdade já participava no jornal e no programa de rádio da universidade. Comecei a trabalhar na televisão em 83-84. Sempre foi o meio de comunicação que mais me atraiu.
Como nasce o seu amor pela gastronomia?
A gastronomia entrou na minha vida muito tarde. Sempre gostei de comer, mas isso não é gastronomia, é gula. Comer, apreciar a comida e discuti-la são coisas diferentes. Tudo começou há 7 ou 8 anos, quando decidi fazer uma reportagem em profundidade sobre o festival gastronómico “Vila Joya”, que se celebrava no Algarve, e que, naquela altura, apesar de já ter tido algumas edições, quase ninguém conhecia. O festival atraía alguns dos melhores chefs do mundo e também havia uma noite dedicada aos portugueses. Naquele momento, ainda não existia a “alta cozinha” tal como a conhecemos agora em Portugal. A emissão dessa reportagem, que durou 30 minutos, mudou muito as coisas. Acho que ajudei a divulgar o conceito de “alta cozinha” em Portugal, ou a democratizar o conhecimento desse termo, porque naquela altura só as elites é que tinham ouvido falar dele.
E, a partir desse momento, decidiu orientar a sua carreira para a gastronomia?
Após 10 dias no festival, dentro da cozinha com os chefs e a conviver com eles, ganhei uma perspetiva da cozinha muito interessante. Mais tarde, fiz outra reportagem sobre o peixe. A questão era averiguar se era verdade que o melhor peixe do mundo é o português. Entrevistámos chefs em Nova Iorque, que compravam exclusivamente peixe português, e até o Ferrán Adrià nos garantiu que o melhor peixe do mundo é o português. Desde a Rússia até Los Angeles, encontrámos peixe português nos melhores restaurantes do mundo e os portugueses não sabiam disso… Tudo isso despertou a minha curiosidade pelo mundo da gastronomia. Assim, comecei a incluir algumas notícias breves sobre gastronomia nos telejornais. Comecei a desenvolver duas carreiras paralelas: por um lado, a de jornalista generalista ou político e, por outro, a de jornalista gastronómico. E mais tarde chegou o programa “Mesa Nacional”, com o qual pretendia falar de restaurantes especiais e dos seus proprietários: essas pessoas que têm uma história apaixonante por trás. Lembro-me com especial carinho de um dos programas: era sobre um restaurante situado numa aldeia com apenas um habitante (que era o proprietário do restaurante). Tinha uma história extraordinária. Pessoas de todo o país, e também de Espanha, iam até lá só para comerem no seu restaurante.
Acho que ajudei a divulgar o conceito de “alta cozinha” em Portugal, ou a democratizar o conhecimento desse termo
Qual é a sua opinião sobre o estado de saúde da gastronomia em Portugal?
Estamos a atravessar um período fabuloso a nível gastronómico em Portugal, porque temos uma oferta fantástica. Acho que a gastronomia atual ajudou a garantir a qualidade dos produtos. Por isso, hoje somos mais exigentes com a qualidade dos produtos do que há 10 ou 15 anos.
E em relação ao futuro?
Acho que no futuro haverá uma seleção natural. Não me parece que o crescimento dos fine dining vá continuar durante muito tempo. Se, por algum motivo, o turismo diminuir em Portugal, os fine dining serão muito afetados. Sobreviverão os melhores. Julgo que temos de agradecer aos fine dining por terem ajudado muito à sobrevivência dos pequenos produtores, porque são restaurantes que procuram produtos de qualidade e que não se importam de pagar um preço mais elevado.
A gastronomia atual ajudou a garantir a qualidade dos produtos
Como definiria a gastronomia portuguesa?
Acho que o algoritmo mais complexo que há num espaço territorial tão pequeno é a questão da diversidade. Portugal é um excelente exemplo de diversidade gastronómica por metro quadrado. Não digo que seja melhor ou pior, mas, em 92.000 quilómetros quadrados, temos uma diversidade gastronómica incrível.
Quem é para si o melhor embaixador da gastronomia portuguesa?
Atualmente, sem qualquer dúvida, José Avillez.
E, se tivesse de escolher apenas um produto, qual seria?
O bacalhau.
Neste momento, que desafios gastronómicos tem Portugal pela frente?
A sustentabilidade, a constância (manter o que lhe custou tanto conseguir durante muito tempo) e a tolerância para com a diferença. Acho que este último aspeto vai ser muito importante para a gastronomia em Portugal. Temos de lutar contra a ditadura do gosto. Não quero que me digam que só os restaurantes com estrela Michelin é que são bons. O futuro está na diversidade.